domingo, 1 de maio de 2016

Desenho e ordenamento ambiental

Muito se comenta a cerca do ordenamento territorial e o desenho urbano no Brasil. Esta abordagem é mais ampla, trata da perspetiva de um ordenamento ambiental, da relação do desfrute do espaço com a sustentabilidade entre a demanda por ar, água, terra, ferramentas e energia que garantam ou facilitem as atividades humanas na História, principalmente a que ainda será escrita.

O detalhamento desta colocação será objeto de outras oportunidades, onde deverão demonstrar o ferramental básico para dimensionamento de insumos para se diagnosticar, mapear, calcular e fazer prognósticos com modelos projetados de desenho de ordenamento ambiental, principalmente os que se integram às técnicas da Arquitetura em geral e do Urbanismo em particular. Aqui se apresentará o cenário genérico da situação bem como os insumos disponíveis para ação positiva diante do ambiente, mediante as demandas da vida contemporânea; os recursos humanos, institucionais, materiais e financeiros disponíveis em nossa sociedade.

A sociedade brasileira está atrasada, ou atrasadíssima, quanto a qualquer estratégia eficiente, eficaz ou efetiva para alcançar o equilíbrio necessário e suficiente entre a vivência do espaço e a criação ou a manutenção de condições razoáveis para o desfrute genérico da população, em níveis razoáveis. Até o presente, entre raras e valorosos exemplos de sucesso ou tentativas cuja intenção mereça ser considerada como lição, o que se tem feito é ensejar a degradação, mormente devida à ocupação desordenada do espaço, seja ele urbano ou rural. Criar ocupações desordenadas nas cidades ou explorar irracionalmente os recursos em campos, cerrados e florestas tem sido a pauta do "desenvolvimento"econômico do Brasil "moderno", mais acentuadamente nas últimas seis décadas.

Alguem já disse e muitos, como eu, repetimos com convicção a máxima de que "não se pode mudar o passado, mas podemos construir um futuro com ações presentes". Pois é, esse presente chegou e já está passando perigosa e rapidamente à condição pretérita, restringindo cada vez mais a possibilidade de uma nova chance, tanto para os brasileiros quanto para a sociedade de nações. Os impactos da irracionalidade no ambiente já deixou de propiciar à natureza a condição de restauração no tempo, pelo menos naquele que a Humanidade possa perceber e desfrutar. Se tornou necessário o emprego de mecanismos, técnicas e ferramentas, capazes de pelo menos manter as condições de vida racional mais convenientes e amenas diante das demandas e das adversidades naturais.

A demanda por alimentos, vestimenta, habitação, salubridade e equipamentos gera com seus vetores variáveis de força (módulo, direção e sentido) uma ação sobre o ambiente, que é limitado. Os intentos por bens cada vez mais têm sido intensamente crescentes. Isto gera uma tensão, um conjunto de perturbações provocadas pelos estímulos representados pelos vetores agentes sobre os recursos disponíveis ou possíveis no meio.

A geração de tensão ambiental e a deformação da relação da demanda com a disponibilidade natural, à semelhança do que ocorre com a matéria, implica em deformações. Desse modo, o aumento da tensão enseja uma alteração ao estado primitivo do ambiente, antes da ação da força das demandas. Cada aumento de tensão implicará numa deformação que, num crescente, apresentará três fases: elástica, plástica e de esgotamento.

A primeira fase diz respeito ao período onde, em sendo a tensão diminuída, o sistema regenera à condição anterior ao aumento de força de demanda, podendo inclusive regredir ao estado primitivo. Esta fase culmina num instante que chamaremos de escoamento, um estado intermediário entre a fase elástica e a posterior. Pode ser considerado como um período de crise e rearranjo interno de condições correlacionadas à força das demandas com o ambiente. A fase seguinte é a fase plástica, que implica em deformação permanente do sistema diante do aumento da tensão ambiental. Nesta fase, ainda que cessem os vetores de incremento da força e, com isso, haja diminuição da tensão, as condições não retornarão à condição anterior e, muito menos, à primitiva, permanecendo no estado provocado pela última e maior tensão. A segunda fase tem culminância no limite plástico, dando oportunidade à última fase, denominada de esgotamento, que diz respeito à degeneração completa do sistema, sua falência.

Em termos ambientais o Brasil se insere praticamente na fase plástica, pelo menos na maior parte dos espaços habitáveis ou aproveitáveis diretamente pelas pessoas. A imagem bucólica do espaço brasileiro cantada pelos artistas do movimento panteísta ou do arcadismo feneceu já no começo do século passado. O equilíbrio elástico foi irreversivelmente superado no primeiro período do Declínio do Café

Desde essa época e até nossos dias, vivenciamos a fase plástica na relação com o ambiente, a ação da força de demanda fez crescer a tensão além do que poderia ensejar reconstituição espontânea. Somente meios artificiais poderão assegurar o equilíbrio entre as demandas, que criam força sobre o ambiente, gerando tensões que levem a novas e mais aprofundadas distorções em relação à condição primitiva e, pior, à irreversível fase de esgotamento no ambiente, substrato da sobrevivência humana. Dentre os instrumentos artificiais possíveis, o ordenamento ambiental é o primordial. Com isto, se praticará eficientemente o levantamento, o mapeamento, o diagnóstico, o prognóstico, culminando com o planejamento eficaz traduzido no desenho (projeto) de um modelo tangível de orientação e observação gerais para a efetividade das ações humanas. A isto se deve manter um ajustamento permanente.

Ao contrário da sensação de muitos em relação ao ambiente nacional ou estadual, de fato, a vida comunitária ou cidadã se dá primordialmente no município. Aí se respira, se produz e se consome; se trabalha e se estuda, se empreende e se descarta. A partir do município se pode criar a civilização por meio das conveniências, das boas maneiras em sociedade; cortesia, urbanidade, polidez; isto é, por meio do ordenamento das demandas por ar e água salubres, terras férteis e energia, de modo a que haja perenidade nesses bens. Porém, o que tende a se expandir é a procura por esses bens, a força da demanda, permanecendo o meio ambiente e seus recursos limitados no território. Este fato é justamente o que ameaça o equilíbrio e gera a tensão, demonstrando mais uma vez a necessidade de se criar dispositivos de arrefecimento dos efeitos desse estresse que é, em última análise, o desenho que reflita o desejo o significado e a vontade (desidério, signo e designo) num arranjo lógico que modele objetivamente o futuro. A essa solução se encaixa, pois, o ordenamento do espaço representado em modelos claros e tangíveis. Até porque fazer o planejamento ambiental e fomentar seu desenvolvimento passou a ser a função primordial da municipalidade no contexto institucional do Brasil.

Desde a década de trinta a população rural perdeu de forma acentuada a hegemonia. As populações rural e urbana se equilibraram no fim dos anos sessenta e desde então as cidades suplantaram o campo em termos populacionais. Em nossos dias menos de 20% ainda vive fora das zonas urbanas. Em todo caso, seja a cidade de qualquer porte, sempre no âmbito do município que se verá a realização da epopeia humana. Mas, o que cabe ao município, de fato, poder fazer em termos de atenção ao cidadão, seu ambiente e sua circunstância? As questões da saúde e da previdência social geralmente estão sujeitas ao governo federal; a segurança pública, aos governos dos Estados (em muitos casos até mesmo a questão do saneamento básico está entregue a empresas desta esfera de governo). Embora subestimada ou negligenciada pela maior parte dos prefeitos, restou à municipalidade a importante tarefa de garantir a profilaxia ambiental. Esta é uma missão preponderante que objetiva vislumbrar e manter boa qualidade de vida com desenvolvimento sustentável mediante os planos de organização espacial e de mobilidade dentro de uma política de Estado, devendo evitar ser apenas mera política de governo, partido ou pessoa. Sua abrangência deve ser urbana, rural e regional, buscando dentro do possível a comunicação e a correlação concorrente de outros municípios.

O produto de um plano de ordenamento ambiental visa construir um ambiente adeuqdo e equilibrado para as atividades humanas, em harmonia com a vida, a paisagem e outros recursos naturais, é um instrumento estratégico que promovberá táticas de consolidação mais apropriadas. Isto deverá estar contido num modelo claro que mostre o caminho a ser seguido do presente rumo ao futuro, algo que se possa tomar como paradigma e que se anteveja como sendo de usufruto mais dos que virão do que daqueles que estão aqui. Portanto, a criação de um modelo de convivência ordenada com o ambiente é atitude proativa e autruista. Isto é semelhante àquele que planta uma jabuticabeira, planta de desenvolvimento lento e produção tardia, cujos frutos de sabor delicado só poderão ser apreciados pela geração seguinte à do que plantou a muda.

Embora não comparecendo nas agendas de grande parte dos políticos brasileiros cujas ações são mais interativas com o imediatismo da eleição mais próxima, outros segmentos da sociedade civil organizada vêm se preocupando com o assunto há muitos anos. Dentre estes setores, as entidades de classe dos arquitetos e urbanistas têm destaque e pioneirismo. Os registros de manifestações favoráveis ao ordenamento ambiental, principalmente nas cidades, por parte dos arquitetos brasileiros, por exemplo, datam de 1922 a partir da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em 1934, o Estado Novo implantou o Sistema Confea/CREAs que trouxe algum efeito letárgico aos anseios reais por um planejamento ambiental mais efetivo, vez que trouxe para a mesma organização profissionais de Arquitetura e de muitas modalidades de engenharias. Este fato ensejou mais luta por privilégios "cartoriais" para o exercício profissional do que, propriamente, a sinergia necessária quanto ao trato do ordenamento ambiental, interesse geral, da Sociedade.

O movimento em prol de se criar condições generalizadas para o planejamento territorial integrado e, portanto, o ordenamento ambiental recobrou força coincidente com a criação, em 12 de setembro de 1956, da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil - Novacap e, com o advento do concurso para o Plano Piloto de Brasília, vencido pelo urbanista Lúcio Costa. No Rio de Janeiro se via grande movimentação nas repartições do governo mudancista a repercutir em ateliês, estúdios e escritórios de artistas, engenheiros, arquitetos e urbanistas. Em São Paulo a Escola Politécnica abria espaço para uma convivência fecunda com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, liderada por um de seus egressos, o arquiteto Villanova Artigas. Belo Horizonte se desenvolvia a partir da semente plantada em Pampulha por Juscelino e Niemeyer. O mesmo dinamismo provinha de Porto Alegre, Recife e Curitiba. No rastro de otimismo dos "Anos Dourados" muitos profissionais se formaram ou se reformaram diante da modernidade e atualidade que varreu a academia e os meios de comunicação, contagiando muitos intelectuais. Esse hálito paradigmático foi capaz de gerar um movimento pela criação de um conselho próprio para o trato da Arquitetura e do Urbanismo brasileiros. Sua inspiração se daria mediante uma visão olística do meio ambiente no contexto do espaço habitavel e de suporte às atividades humanas, em todos os sentidos das ciências e das artes, além da técnica.

O golpe militar que derrubou o Governo em 1964, culminando com mudança constitucional em 1997 e ainda em 1969, trouxe retrocessos para as pretenções da Sociedade em planejar melhor o ordenamento dos espaços em particular e do meio ambiente em geral. A aparente sensação de renascença deu lugar ao silêncio ou ao debate restrito e sectário. Em 1966 a edição da Lei 5194 conteve mais uma vez a discussão emanente entre os arquitetos e urbanistas mantendo-os restritos ao âmbito do antigo Sistema Confea/CREAs. Isto recrudesceu antigas disputas cartoriais por atribuições profissionais privativas em detrimento da objetividade social do projeto de ordenamento ambiental. Mais de 40 anos passaram até que a Lei 12378, em 2010, viesse a resgatar o papel do urbanista no protagonismo da coordenação do projeto de ordenamento ambiental a partir do desenho, do modelo sintético para o prognóstico.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O desenho técnico na comunicação da ideia


Parte de banca examinadora de trabalhos interdisciplinares da Unitri
(esq. p/ dir.) Professores Clayton Carili, Hélio Vaz,  Doralice Nóbrega, Adailson Mesquita,
Sérgio Peixoto, Márcia Medeiros, Rogério de Mello Franco e Kleber Zárate
Membro de banca encarregada de julgar trabalhos de estudantes, fui perguntado por um de meus pares porque exigia - e exijo - "tanto" que se observe as normas de desenho preconizadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT. A pessoa que me questionou lembrava - com justa razão - que se haveria de "ver além do desenho técnico". Imagino que se referia às questões estética, eficiência funcional, estrutural, econômica e ecológica, os "5Es". Quanto a estes quesitos, apóio totalmente a observação recebida pois advogo a tese; quem deseja fazer boa proposta em arquitetura, estudantes inclusive, só pode fazê-lo se observar in totum estas cinco premissas. Entretanto, quando se avalia uma proposta cuja expressão ainda está na fase do projeto, as maneiras de representar a ideia, me parece, costumam ser o desenho, a modelagem e o texto. Eventualmente,  aparecem outras técnicas que ensejam provocar os cinco sentidos.

Há quem expresse o pensamento arquitetônico pelo desenho artístico a mão livre, como é o caso de Oscar Niemeyer. O mestre, com meia dúzia de linhas sobre uma superfície, demonstra quase toda essência de um edifício ou espaço arquitetural, fazendo com que uma arte expresse a outra. Já testemunhei casos parecidos: o Lelé tem uma expressão de desenho com mais cores e texturas, não raramente acompanhado de explicações sumárias e concisas, escritas em letra cursiva; Paulo Mendes da Rocha, depois de Jorge Moreira, gosta de fazer singelas maquetes de papel comum, verdadeiras revelações das ideias. Vi muitos trabalhos de estudantes de arquitetura elaborados com representação simples, mas densa, em desenhos, maquetes e textos primorosos. De alguns, assisti também, por meio da expressão oral, explanações que completavam nas mentes da assistência o que havia brotado da imaginação de quem expunha. Estes são exemplos de pessoas que brilharam - e brilham em seus legados - pela criação ou, pelo menos, pela comunicação do pensamento criativo.

Figura extraída de uma lição básica
de projeções ortogonais em desenho arquitetônico
Porém, essas qualidades para a comunicação das ideias não estão apensadas a todos os que desejam ou precisam conceber uma arquitetura. Aliás, a minoria desenvolve satisfatoriamente a expressão do que cria, nesse particular, através do desenho artístico ou da escultura e do texto técnico-literário. Por isto, para todos, e mais especificamente para a maior parte dos que desejam fazer arquitetura, se estabeleceu o desenho técnico, quase impessoal em si, que pode ser feito até a mão livre ou, como se apresenta corriqueiramente, ser elaborado com instrumentos que vão do mais primitivo lápis (do latim lapis, -idis, pedra) até chegar aos poderosos computadores de nossos dias. Esta, talvez, seja a mínima exigência de expressão que se possa fazer àqueles que, não sendo dotados de habilidades especiais, mesmo assim, tenham competência necessária para expressar e, antes, para tornar comum a outrem, seus pensamentos na arquitetura e mais além.


Não basta conhecer e saber usar o desenho técnico, há que traduzi-lo de maneira a ser integralmente compreendido, para que tenha sentido para outros. Para isto, à semelhança dos idiomas falados e escritos,  existem os códigos gráficos para desenhos técnicos. No caso do Brasil a recomendação é a observância do que preconiza a ABNT. Para desenhos arquitetônicos, especificamente, a Norma Brasileira NB-6492. Isto é um critério para a justeza - e a justiça - no entendimento do que se vai avaliar para entender. Trata-se de técnica imprescindível também para se julgar objetivamente mediante impessoalidade, uniformidade e universalidade.

Aeroporto de Guararapes em Recife - PE
croqui do autor, Arqº José Mauro Gabriel
Assim, a menos que apareça alguém  capaz de comunicar tão bem suas ideias em arquitetura além do desenho técnico, expressando-se numa linguagem tão natural que possa ser sentida numa interação humana "supracultural", percebível acima dos códigos limitados a nações ou grupos, vejo positiva a exigência mínima da expressão da arquitetura no Brasil, incluindo as escolas de arquitetura, feita na forma culta (e técnica). Para isto temos a língua portuguesa, e o desenho elaborado de acordo com as normas brasileiras que, afinal, são criadas com esse fim.

Em tempo, quero registrar que um dos estudantes julgados pela banca supra mencionada, mesmo claudicante na expressão técnica de seus desenhos, foi além: criativo, completou o mínimo (todavia incipiente) da apresentação de sua ideia por meio de desenhos artísticos muito elucidativos e convincentes, numa expressão artística importante que merece atenção e aperfeiçoamento. Isto valeu para demonstrar que pode haver um grau mínimo de expressão, mas que, para habilidades naturais e competências adquiridas, o limite é extremo, ousado e ainda desconhecido.